Ali pras bandas de
Sobradinho em São Thomé das Letras nas Minas Gerais, o povo é muito cordato,
bem humorado. Acostumados a contação de causos e acontecidos mesmo que
inusitados, dizem que existe história e estória, causos e casos. E quando
alguém conta um causo ninguém fica perguntando se é vero ou não, um causo é um
causo e pronto!
Verdade ou invenção,
quem me contou esse acontecido foi um caboclo muito do sabido conhecido por
compadre Irineu. Alias, é bom saber que no lugarejo é comum chamar os homens de
compadre e as mulheres de comadre, já que todos ali se conhecem de muito tempo,
menos compadre Irineu que ninguém sabe de onde veio ou quando ali chegou.
À boca pequena,
comentam alguns que ele é meio como um ET só que ninguém sabe em que nave veio,
já que é mais antigo que o ET de Varginha. É, digamos assim, um personagem envolto em mistério, que
parece já ter andado pra todo o cafundó desse mundo de meu Deus. Ouvindo das
suas andanças, parece até que já teve lá pros lados de Atenas, já que filosofa
como poucos. Pra ter uma ideia do estou falando, tempo desses a caipirada da
vizinhança passou horas a fio o ouvindo contar duma tal de Odisseia, onde um
caboclo chamado Odisseu viveu mil e uma aventuras até voltar pra casa depois de
10 anos, onde a mulher dele Penélope tinha ficado um tempão esperando pela sua
volta e resistindo as cantadas da homarada que brigavam de porrete por ela
todos os dias.
Mas deixemos de trelelê
pra ir direto ao causo, que começou quando numa noite de lua cheia no mês junho
de 2000 e um cadiquinho, quando compadre Irineu, acometido de uma baita
insônia, resolveu sair em caminhada pra desanuviar a cabeça. Sabe-se lá como,
quando ele percebeu já tinha andado tanto que deu de cara com a Gruta do
Carimbado, um lugar cheio de mistérios e lendas, que só quem já foi a São Thomé
sabe disso. Dizem até que o caminho da gruta leva até a antiga cidade Inca de
Machu Picchu que fica no Peru. Surpreso
com o lugar onde fora parar, mas, seguindo uma força misteriosa que o empurrava
para dentro da gruta, Irineu foi se embrenhando cada vez mais naquele buraco
sem fim.
Suando que nem cavalo
no arado foi andando, apertando o chapéu na cabeça cada vez que tinha que
desviar da ponta duns cristais que escorregavam do teto da gruta. Não bastasse
esse incomodo, toda hora tinha que espantar os morcegos que passavam voando
rente à sua cabeça. Seguindo cada vez mais para o interior da furna, levado
pela tal força misteriosa foi se embrenhando pelos vãos que iam surgindo e
seguindo adiante. E o calor, que era infernal, ia só aumentando até que uma
onda de vertigem o fez levitar ao invés de caminhar...
E foi assim que quando
ele deu por si estava na boca de saída da gruta, “onde o sol brilhava um brilho de doer os olhos”. Ali todo sujo de
terra e saibro, cansado, com muita sede e ainda atordoado depois daquela que
parecera uma estranha e interminável viagem, permaneceu deitado por um tempo na
grama. Acordou quando ouviu o alarido dos pássaros e ao longe uma espécie de
gritaria. Pensou: “Será que cheguei a
Macchu-Pitcchu? Só pode ser. Que outro lugar eu chegaria vindo por essa gruta
desde São Thomé? Afinal é isso que as pessoas de lá acreditam”. E entremeio
a essas divagações, tentou se levantar, mas a cabeça ainda girava. Ouviu um som
parecido com um marejar de água e o seguiu arrastando-se até encontrar um
pequeno córrego onde mergulhou de roupa e tudo. Sentiu-se como se tivesse
encontrado um oásis em pleno deserto...
Depois do
refrescamento, saiu da água e deitou na margem do córrego. Ainda estava
confuso. Adormeceu pensando em organizar uma expedição pelo lugar desconhecido.
Passado um tempo,
acordou com uma forte sacudida na cabeça e ao seu redor estavam meia dúzia de
homens vestidos como se tivessem saído de algum livro de história, com seus
chapéus de couro, lenços coloridos e muitas bordaduras nas vestes. Aquele que
parecia ser o chefe do bando dos cangaceiros, perguntou: “de donde vem o cabra com essas roupas esquisitas?” Irineu, já
refeito do susto, ainda pensou: “eu de
roupa esquisita?”. “Vamo lá,
abestado, responde o chefe”, falou um que parecia mais atazanado com aquele
estranho ali naquela cercania. Compadre Irineu levantou, colocou o chapéu, e
respondeu: “Eu sou de São Thomé das
Letras”. “São Tomé do que? isso tá
cheirando espião chefe. Vamo levá pro acampamento, lá o Capitão decide o que
fazer com esse abestado; quem sabe esfolamos o danado pra conta tudo que sabe”
O chefe olhou pro compadre Irineu, passou o punhal na mão como que estivesse
afiando e deu a ordem: “vamo leva o
cabra!”.
Compadre Irineu tava
abestalhado com a situação. Já ouvira falar de cangaceiros, mas isso fazia
parte da história. Não podia estar acontecendo de verdade. Pelo caminho foi
observando ao redor, para ver se desvendava o lugar onde estava. Parecia tal
qual uma daquelas cidades fantasmas que se via nos antigos filmes de cowboys.
Um lugarejo em ruinas, uma igrejinha caindo aos pedaços, algumas casas
abandonadas. Ao longe, onde divisou o que seria uma rodovia, dava para ver até
os restos de um posto de gasolina. Nenhuma viva alma no lugar, só aqueles que o
conduziam e que iam conversando numa linguagem difícil de entender. Única coisa
que compreendeu é que eles estavam ali de passagem e que o lugar aonde viera
parar chamava-se Brejo do Encantado, próximo de Verdejante em Pernambuco.
Passado algum tempo de
caminhada quando pensou em perguntar se o tal acampamento estava longe, viu que
chegaram ao que parecia ser uma torre feita de tijolos e entraram por um vão
onde tudo ficou escuro. Enquanto era puxado por um dos cangaceiros que lhe
servia de guia, tropeçou no degrau de uma escada que parecia ir levando para
baixo. O tempo ia passando enquanto pensava: “isso só pode ser pesadelo, onde já se viu encontrar um bando de
cangaceiros em pleno terceiro milênio, será que tinha alguma coisa naquela água
que bebi? Não pode ser, devo estar delirando, deve ter sido o sol na cabeça...”
Saiu dos pensamentos
quando uma claridade um tanto difusa lhe veio aos olhos, percebeu que estavam
ao ar livre e lá estava o acampamento. Era noite de lua cheia. Ouviu o som de
uma sanfona e viu homens e mulheres que dançavam em volta de uma fogueira e
cantavam uma cantoria que mais parecia xaxado ou baião. Sentado próximo da
fogueira viu aquele que parecia ser o Capitão, era ele mesmo o Lampião, o
Capitão Virgulino Ferreira, ali igualzinho nas fotos que já tinha visto,
“vivinho da silva” como diz o pessoal lá do Sobradinho.
Foi empurrado pra junto
da fogueira e o chefe do bando que o trouxera falou: “Capitão, achamos esse cabra com esse chapéu almofadinha dormindo lá na
beira do Córrego das Almas. Como disse o Severino, tá parecendo que é um espião
vindo não se sabe donde”. O Capitão Virgulino levantou, olhou olho no olho
no compadre Irineu, como se quisesse adivinhar de onde tinha saído aquele cabra
ali na sua frente... Por sua vez Irineu olhava para o cangaceiro à sua frente
como se estivesse vendo uma assombração, mas, ao mesmo tempo, parecia
reconhecê-lo, mesmo naqueles trajes disparatados. Enquanto se perguntava de
onde conhecia o dito cujo, Lampião estendeu-lhe a mão e disse: “Só pode ser
você Irineu, cabra da peste, há quanto tempo? O que faz aqui pras bandas de
Pernambuco?”. Irineu estava embasbacado com a descoberta: “Como é que viera parar em Pernambuco, se ainda ontem estava lá em São
Thomé? e como é que o Lampião sabia o seu nome? devo estar ficando louco, ou
ter tomado algum chá de cogumelo sem saber”.
Enquanto matutava sobre
como fora parar no Brejo do Encantado, àquele lugar único e parado no tempo,
conhecido pelas histórias que corriam mundo afora, na voz dos cantadores de
cordel, repentistas e contadores de causos, compadre Irineu ouviu o som do que
pareciam tiros e um alarido sem fim. E num instante viu tudo sumir à frente dos
seus olhos: Lampião, cangaceiros, fogueira, cavalos, tudo!
Quando novamente deu
por si estava sentado numa pedra na entrada da Gruta do Carimbado em São Thomé
das Letras, rodeado por um grupo de turistas que lhe perguntavam se era verdade
que aquela gruta levava à Machu Picchu. Ao que ele, ainda atordoado, respondeu:
“Se leva a Machu Picchu eu não sei, mas a
Pernambuco isso lá é verdade”. Dito isso, pegou seu chapéu de cangaceiro e
saiu andando rumo a Sobradinho.
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